Era fim de fevereiro, descanso da festa de Carnaval em Mindelo. Meu corpo viajou muito até a ilha e já estava entranhado de poesia entoando versos naufragados de angústia, fúria, medo e solidão.
Eu, Maria Esperança das Dores, já não sentia mais a falta do doutor Flores, como era conhecido o homem que me sangrou o ventre no dia que dei à luz ao rebento, nascido em 26 de fevereiro de 1.994.
Minha memória guarda a gratidão das ilhas de Barlavento quando Flores caiu no Mar para nunca mais voltar depois do estupro marital naquele Carnaval.
Eu saí do mar com uma ardência de gratidão negra que parecia beijar Cabo Verde, o país de Corsino Fortes e seus encantos. Restava-me nas mãos apenas o filho de minhas entranhas que decidi batizar de Benjamim, o filho da felicidade.
Sim. Era a nova felicidade de habitar meus dias de sepultamento de Flores, aquele homem que me tomava à força todos os dias até mesmo no momento em que Benjamim deu o primeiro sinal que viria ao mundo.
Agora, tenho nessas ilhas africanas a esperança e a felicidade. Eu me tornei a Maria Esperança que nunca tinha sido desde o dia em que minha mãe partiu e me deixou com meu próprio pai.
Eu deixarei o relato da mulher insubmissa que fez sangrar as vísceras daquele homem que o mar levou. Eu serei a Esperança para Benjamim que nunca mais olhará a tristeza do ventre de sua mãe nas ilhas de Santo Antão e São Vicente.
Benjamim cresceu sem saber de sua identidade paterna. Viajei anos a fio pelas ilhas, mudei a alma de lugar, passei a ler histórias encantadas no Baobá para ele adormecer os traumas invisíveis. Cada mãe derrama em seu ventre as histórias de sangramento, de submissão, de medo, de choros, mas eu me tornei a Esperança que trazia o cheiro do mar, a força do vento esculpindo o riso largo da mulher africana que cobria a nudez dos ombros com suas Capulanas. E assim, Benjamim, o filho de meu livramento se tornou a canção do berimbau na roda da capoeira que dei o nome de kontentamentu, em crioulo de Guiné-Bissau.