AFRICANUA E OUTROS POEMAS AFROS

AFRICANUA E OUTROS POEMAS AFROS
Livro digital gratuito publicado pela Editora Pimenta Cultural

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

BEJAMIM




Era fim de fevereiro, descanso da festa de Carnaval em Mindelo. Meu corpo viajou muito até a ilha e já estava entranhado de poesia entoando versos naufragados de angústia, fúria, medo e solidão.

Eu, Maria Esperança das Dores, já não sentia mais a falta do doutor Flores, como era conhecido o homem que me sangrou o ventre no dia que dei à luz ao rebento, nascido em 26 de fevereiro de 1.994.

Minha memória guarda a gratidão das ilhas de Barlavento quando Flores caiu no Mar para nunca mais voltar depois do estupro marital naquele Carnaval.

Eu saí do mar com uma ardência de gratidão negra que parecia beijar Cabo Verde, o país de Corsino Fortes e seus encantos. Restava-me nas mãos apenas o filho de minhas entranhas que decidi batizar de Benjamim, o filho da felicidade.

Sim. Era a nova felicidade de habitar meus dias de sepultamento de Flores, aquele homem que me tomava à força todos os dias até mesmo no momento em que Benjamim deu o primeiro sinal que viria ao mundo.

 Agora, tenho nessas ilhas africanas a esperança e a felicidade. Eu me tornei a Maria Esperança que nunca tinha sido desde o dia em que minha mãe partiu e me deixou com meu próprio pai.

Eu deixarei o relato da mulher insubmissa que fez sangrar as vísceras daquele homem que o mar levou. Eu serei a Esperança para Benjamim que nunca mais olhará a tristeza do ventre de sua mãe nas ilhas de Santo Antão e São Vicente.

Benjamim cresceu sem saber de sua identidade paterna. Viajei anos a fio pelas ilhas, mudei a alma de lugar, passei a ler histórias encantadas no Baobá para ele adormecer os traumas invisíveis. Cada mãe derrama em seu ventre as histórias de sangramento, de submissão, de medo, de choros, mas eu me tornei a Esperança que trazia o cheiro do mar, a força do vento esculpindo o riso largo da mulher africana que cobria a nudez dos ombros com suas Capulanas. E assim, Benjamim, o filho de meu livramento se tornou a canção do berimbau na roda da capoeira que dei o nome de kontentamentu, em crioulo de Guiné-Bissau.

 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

 SY AYSÚ

 

Índia, exótica ou pretinha, hahaha! Eu não sou!

Já cantaram as aves da Graúna e Kambeba.

Escute bem, meu senhor:

Não me chame de “sua nega”

Não me tome de caboquinha

Não sou sua “cor do pecado”

Muito menos sua mulatinha!

Não me venhas com dengos, seu racista!

Não insista! Sou anti-colonizador!

 

Grave bem,  meu senhor:

Não sou seu corpo-território!

Meu corpo é life afro-livre

Meu corpo é sem suspensórios.

 

E assim, eu canto porque re-existo:

 Eu vim de lá,  eu vim de lá...

Eu vim de lá, eu vim dançando parixara...

Sou a cunhã do aroma de patchouly!

Eu vim de lá, eu vim de lá...

Eu vim dali, sou patuá, eu sou daqui!

 

E tem mais, seu karaiva:

Eu sou a Sy guerreira que abriu as pernas,

gozou poesia e gerou Makunaima!

E assim nasceu este filho trans-amor:

Sou kunhã poranga, sou guarani... 

Muito prazer!  Eu  sou Aysú macuxi!


(Poema inédito produzido exclusivamente para a Mostra Picuá, inspirado na força dos professores indígenas do Parfor Equidade, onde fui Professora Formadora)

....

Glossário explicativo do poema

 

Aysú: amor, em tupi-guarani; e no poema significa “Amor” sem especificidade de masculino para contrapor com a palavra poética trans-amor para todos os povos originários, sem preconceitos de raça, gênero e etnia.

Karaiva: A origem da palavra "caraíva" é indígena, da língua tupi-guarani. Ela é formada pela junção dos termos "kara'i" (que significa "senhor" ou "chefe") e "yba" (que significa "terra" ou "lugar"). Portanto, "caraíva" pode ser traduzida como "terra do chefe" ou "lugar do senhor". No poema a expressão foi utilizada como senhor branco, invasor  do corpo-feminino-indígena.

Kunhã poranga: no poema, preferiu-se a grafia em tupi-guarani.

Parixara: dança, mas no poema a expressão é utilizada como um canto em lá menor.

Patchouly: aroma ogostemon patchouly, designada patchuli de Java, usado na indonésia e na música Roraimeira de Zeca Preto, sentindo intertextual utilizado no poema para a mostra Patuá.

Sy ou Ci, ou Maya: Mãe, tupi antigo, em tupi-guarani e Ci, em línguas indígenas existentes como Wapichana.

Sy Aysú: No poema, o significado é mãe-amor, aquela que pariu o Brasil e não aceita mais ser corpo-território de invasores de terras indígenas.

 

domingo, 28 de janeiro de 2024

MARIAS

 MARIAS                                             


As Marias que acordam comigo 

Tecem fios e costuram indrisos...


As Carolinas que me habitam

Catam entulhos de fome e solidão...  


As Dalilas que me fecudam          

Enfeitam as tranças de Sansão....      

                             

As  dançarinas que me desnudam          

Tiram os lenços  nos cabarés...   

                        

 As Capitus que me oblicam                     

 Ciganam os corpos de sedução...

                                  

As Liliths que me enfeitiçam    

 Embriagam os Cristos nas paixões...   

                                 

Já as Mulheres que me povoam

 Vestem-se de Anas e Bacantes, 

Safo,  Anactoria e Penélopes,

Indígenas,  Quilombolas e Africanas, 

Ribeirinhas, Portuguesas e Amazonenses

e outras mil mulheres banto

para desfiar risos e resistências.


(Rosidelma Fraga)

domingo, 9 de abril de 2023

PENETRAÇÃO DO ADEUS

 

PENETRAÇÃO DO ADEUS

 

Visto-me de palavras sem ter a senha

para desbloquear frívolos sentimentos.

Um bom poema precisa de composição

para ser apenas inaudível e intransigente.

 

Um poema precisa adentrar

O sêmem da palavra desafeto

porque o afeto já não se poema.

Afeto não se compra para rimas.

Um bom poema nasce de ausência,

de renúncias, desamor e despedidas.

 

Eu, a poetinha da razão, dos pretos,

do beco, da mulher negra, das minorias

e da grandeza das prostitutas e dos órfãos,

deixo somente a rima da palavra nudez

porque se queres amar, ame com o corpo,

a alma - já disse Bandeira - estraga o amor.

 

Ora, o amor já não bebe os pudores falsos,

nem mesmo despe o gozo dos santuários.

Amar é a eterna volúpia do beijo africano

Amar é a penetração silenciosa da palavra adeus.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Antes que o sol adormeça

 Venha ver meu sol

com lábios de fome

Metade homem

Metade menino.

 

Vem bailar comigo

Enlaçar meu corpo

Me vestir teus fetiches.


Vem beijar com vinho-tinto

Se fazer de esquecido

Até o amor perder o juízo.


quinta-feira, 29 de setembro de 2022

MANIFESTO DE POESIA

Fica decretado na Lei 13 mil do Universo, os artigos, a saber:

Art 1. O amor de Deus acolherá pretos, pardos, indígenas, órfãos e Madalenas.

Art. 2. Não haverá poema que fale de ódio, misoginia, homofobia, gordofobia, transfobia, etc, etc, etc...

Art. 3. Não haverá céu diferente para pessoas diferentes porque lá não haverá governo nefasto.  

Art. 4. Não haverá separação entre periferia e centro. Todos fartarão do mesmo milagre do pão.

Art.5 . Fica decretado ainda que as pessoas especiais e as crianças ensinarão aos homens que o amor virará poesia e não se amará pela distinção de raça,  etnia , cor, gênero ou religião. 

Art. 6. Para fins de direto, será extinto do universo todo aquele que não jurar amor, amor e AMOR. 


(Rosidelma FRAGA).

sábado, 21 de maio de 2022

PARTILHA

 

Não se partilha afeto em retalhos

porque meros afetos são detalhes,

pontas falhas, linhas tortas e torpes.

 

O amor é uma cena de gozos

sorrisos, toques e delírios a rasgar

o corpo molhado e suado da poesia.

 

O corpo intenso de Madalena

já não pode ser o amor sagrado.

Sagrado é o que fica depois

que Madalena rasga seu véu,

deixa a camisola vermelha

nos prostíbulos da poesia.

 

Afinal, Madalena caminha adiante

porque suas noites são de ausências...

E Madalena, vestida do perdão de si,

escreve suas histórias apenas de corpo...

Com o corpo se faz versos,

apaga-se rimas, mede-se ritmos.

Mas o amor é o que ela levou

para além de uma efemeridade.

(Rosidelma FRAGA).

 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

CATIVOS


Entre mimos

molhados

e babados,

tu vens, retinto

adoçar rimas.

Em noites afros

tu vens tocar-me

feito menina.

 

Entre rimas

e mimos

saio para afagar

o teu corpo-poema.

 

Vestida de algemas

solto tuas correntes

para sermos cativos

um no outro e do outro

em gritos sem dor.


(Rosidelma Fraga).

 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

ORFEU NEGRO

 

Meu Orfeu tece em mim

os sabores da eternidade.

Meu Orfeu veste em mim

o tecido de seu corpo suado

e em meu corpo faz morada.

 

Meu Orfeu é o retrato

do corpo que samba,

da canção que sangra,

de Lilith que dança,

de Madalena que ama

e do gozo em chamas.

 

Meu Orfeu vibra todo afro

e nosso gozo se faz cascatas.

Meu Orfeu degusta em mim

o gozo de amantes metáforas

e geme de amor e vozes caladas.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

POEMA NASCENTE

 Um poema não se pede

Um poema não se espera.


Como arte do além,

o  poema é uma nascente,

brota e jorra versos!

Um poema ergue-se sem razão 

Como as cem razões de afeto.


Porque um poema é doação...

É poesia de rima e sertão .


Um poema faz da sina a poesia

Para abraçar o tempo infinito

E louvar-te meu amigo, pelo teu dia!


(Para meu amigo Sérgio Lopes

Por Rosidelma Fraga). 

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

COMO SE FOSSE SOL


Venha ver meu sol

em dia de branco

em noites de encanto.

Tocarei teu cheiro

E desnudarei teu pranto.

 

Faça-me tranças

em castelos de êxtase.

Dançarei em teu corpo

como se fosse amor

como se fosse flor.

 

Segure meu corpo

como se fossem cordas

em  tom suave de sol.

Guardarei tuas cores

como se amanhã fosse hoje

em som de eternidade.



Por Rosidelma Fraga.

 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

DUETO DE PRETO



Tem cheiro de preto

meu verso de Amor.


Tem toque tição 

meu poema-segredo.


Tem riso de preta

minha rima de festa.


Tem boca sedenta

minha alma ausente.


Tem pele dourada

meu livro rasgado.


Tem gosto de amora

teu corpo de agora.


E de teus beijos afros e molhados

Cubro-me da poesia enamorada. 


(Rosidelma Fraga, 2022).


domingo, 14 de novembro de 2021

NEGRA, AVANTE!

 

 Negra, eu ouvi teu gemido.

Teu gemido em mim é poesia.

Eu ouvi as chamas de teu pranto

e meu verso do porão virou grito.

 

Por isso invoquei a águia do oceano

para adormecer a fúria dos homens.

 

Em rimas venho dizer-te, negra:

enegreça a fúria do homem branco

com o cintilante de tua negra cor.

Seja como for, seja FLOR

Floresça, negra!

Não se curve, nunca!

Banhe os olhos turvos

do excludente e indiferente.

 

Não pare, negra!

Siga adiante!

Marche!

Não recue! Enalteça-te!

 

E digo mais,

preta cor de amora,

sorria pelo rio afora!

Diga que não és mito

Diga

Repita

Reprise

E grite: AVANTE!

 Avante com seu canto

pois maior que a dor será teu riso

o riso da mulher negra

é o véu do infinito.